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Histórias animais
domingo, 14 de junho de 2015
sexta-feira, 12 de junho de 2015
Das faces do preconceito
Ela levantou cedo, animada, pronta para começar o dia. Doze de junho. A cama vazia mas o coração funcionando. O amor precisa saber enfrentar a distância dos turnos, plantões e horários de trabalho trocados. Quando estivesse com o namorado de novo faria alguma coisa pelas convenções.
Mas antes havia outro grande amor para cuidar: rabo abanando, pulos e muita baba. Sua cachorrinha enlouquecida, esperando a rotina matinal de carinho, brincadeiras e biscoitos. Enquanto pulavam no quintal, ela disse:
- Quem é minha namorada? Quem é minha namoradinha?
A cachorra respondeu com uma lambida no rosto da humana. A vizinha, que passava pelo portão, parou:
- Cruzes, Deus me livre! Como que você fala uma coisa dessa? Namorar uma cachorra, isso é pecado!
- É só brincadeira, Dona Dalva.
- Nem brinca com uma coisa dessas! Ela é uma "feminha", se ainda fosse um cachorro!
Feliz Dia dos Namorados para quem ama sem preconceitos (para quem tem preconceito também, porque o amor transforma)
quarta-feira, 16 de julho de 2014
Amizade perdida
Outro dia me perguntaram se eu já havia perdido alguma amizade por causa dos animais. Um fato é que eu automaticamente me afasto de pessoas que vem com aquele papo: “você gosta mais de bicho do que de gente”. Primeiro, porque é uma idiotice. Segundo, porque quem fala isso geralmente gosta mais de celular do que gente, de Playstation do que de gente. Então, na prática, estaríamos empatados. Se não fosse, é claro, o fato de que pessoas são animais e eu não faço distinção entre uns e outros.
Mas me lembrei de um caso. Uma amiga casou e o marido não aceitou receber a cachorra que viveu com ela durante anos. As duas dormiam na mesma cama, eram apaixonadas. A amiga é uma verdadeira cachorreira, dessas que ajudam animais de rua e enchem seus animais de mimos. Eu também adorava a cachorra. Diante da foto dela e da cachorra juntas, virei e disse o seguinte: “Como é que você trocou essa coisa linda por esse sujeito aí?”
Era brincadeira. Falamos rindo. O marido levou a sério. Me xingou e ainda esculachou o presente de casamento que eu dei. Na vez seguinte em que encontrei com eles foi uma festa com vários convidados. Nunca ouvi tantas indiretas por causa de um presente de casamento ruim. Saí do lugar completamente humilhada. O detalhe é que eu realmente havia dado um presente simples porque estava sem dinheiro na época, mas já havia encomendado uma adega especialmente para dar de presente ao marido. Fiz um freela para pagar a tal adega. Mas o cara ficou com tanto ódio de mim que nunca mais vi o casal.
- Nossa que chato. Você deve ter ficado arrasada de perder essa amizade.
- Sim, foi muito difícil para mim. Nunca mais tive notícias dela, não podemos nem nos encontrar.
- Nossa, ela não pode nem te ligar, conversar contigo no facebook?
- Como assim?
- Ué, a moça! Ela também ficou zangada, não sente sua falta?
- Ah, não, eu estava falando da cachorra... Esta sendo difícil a separação, ela era muito querida...
Em tempo, devolvi a adega e comprei tudo em ração para animais de abrigos. Os bichos nunca reclamaram do presente.
domingo, 23 de junho de 2013
Alexandre Pequeno e as cinco gatinhas
Recentemente, num curso com a escritora Noemi Jaffe, ganhei um presente: um personagem. Alexandre Pequeno, criação do Edérson Fernandes de Souza. Alexandre Pequeno não é um adolescente qualquer. Ele foi criado pela avó, é bipolar, sonha em ser traficante e, para completar, seu grande sonho é ir para o motel com cinco gatinhas. Minha missão era criar um conto com ele.
Como eu sou a prova viva de que um amigo animal pode nos ajudar a enfrentar qualquer dificuldade da vida, a história ficou assim:
- Alexandre? Alexandre, olha para a minha cara. Eu não vou falar de novo. Olha aqui, olha bem
no meu olho.
- Ai, Vó, pelo amor de Deus! Você acha que é fácil?
- Não grita comigo, que não foi essa educação que eu te dei!
Quem grita aqui sou eu! Eu que sustento essa casa. Quem grita aqui sou eu! Olha
para mim, que eu vou falar. Eu não quero mais que você diga essas coisas para
os seus amigos! Qualquer dia, a polícia
vai bater aqui!
- A senhora acha que é fácil? Acha que é fácil se chamar
Alexandre Pequeno Júnior? Como a senhora
acha que eu vou sobreviver na escola?
- Olha, moleque, eu não sei como você vai sobreviver, mas
não vai ser dizendo para os outros que você é irmão do Zé Pequeno, da Cidade de
Deus, que você vai resolver isso! Os vizinhos estão falando que eu escondo
drogas em casa!
- Só por Deus! Eu preciso de respeito, Vó, eu não aguento
mais ser humilhado. A senhora ainda foi dizer para a vizinha que eu nasci na
Argentina. Um negócio que aconteceu por acidente! Puta merda!
- Bate na boca! Bate na boca agora, eu tô mandando!
- Tá bom, Vó! Fala baixo, já bati!
- Olha, Alexandre, estamos entendidos? Eu não tenho culpa do que aconteceu quando
você nasceu. Eu faço a minha parte! Chega dessa história de querer ser
traficante, chega dessas invenções de Zé Pequeno!
- Mas minha mãe era traficante! Ela entrou em trabalho de parto cruzando a
fronteira com maconha!
- Alexandre, olha para mim, me escuta: sua mãe era
muambeira. Ela foi para Foz do Iguaçu comprar perfume, batom
24 horas, raquito de sol e tesourinha dobrável!
Ela nunca foi traficante. E ela
estava morando na Argentina por causa do seu pai. Você tem que aceitar que você é filho de um
garçom argentino com uma muambeira brasileira.
- Fala agora, vó, que minha mãe me largou aqui e sumiu no
mundo! Essa infeliz! Nem para me arrumar um pai chamado Alexandre Grande, tinha
que ser um Alexandre Pequeno?
- Você quer que eu te
console? Porque tem um consolo nisso
tudo, Alexandre.
- Tem, Vó? A senhora acha que tem algum consolo? Se a
senhora nem me deixa tentar defender a minha honra.
- Pelo menos ela te largou aqui enquanto você ainda era
bebê. Seria muito pior se ela tivesse esperado mais, porque daí, além de ser
pequeno você ainda ia ter sotaque argentino.
Aí você ia ver que que é viver no
inferno! Eu faço tudo que posso para te
ver feliz.
- Eu sei, eu sei. Eu
tenho que parar com essa mania de contrariar a senhora.
- Alexandre, meu filho, a culpa não é sua. Isso não é mania.
Você é bipolar. Se você não tomar os
remédios. Nossa vida vai ser sempre
assim. Você tem que tomar os remédios e
se conformar.
- Ela podia ter colocado pelo menos o sobrenome da senhora
também, né? Assim eu teria outro sobrenome para falar para os outros. Se eu fosse Alexandre Pinto Peq... Ah, deixa
essa porcaria para lá. Eu vou para o
quarto. Eu tô de castigo, não tô?
- Tá. Toda vez que
você falar para alguém essa idiotice de Zé Pequeno, vai ficar de castigo, mesmo
sendo um burro velho de 15 anos. Comigo é assim, é no castigo.
- Com essa vida que eu tenho é melhor mesmo ficar no quarto
com elas...
- Isso, vai ficar com elas.
Alexandre entrou no quarto e se jogou na cama. Queria muito
chorar. Mas sabia que traficante não
pode ser bundão. Essa coisa de chorar
não pega bem. As cinco gatinhas foram se
aproximando dele, tomando conta do colchão de solteiro, já coalhado dos pelos brancos que elas viviam
soltando. Mimi, Ninoca, Dora, Docinho e
Shee-ta-ra. A vida era ruim, mas desde
que pegou as cinco num caixa de papelão jogada na porta escola, pelo menos já
não era tudo tão solitário. Quando fosse
um traficante bem sucedido, iria sair dali e realizar seu grande sonho: morar num quarto de motel com as cinco
gatinhas, no melhor quarto, com a cama mais espaçosa e macia, para que nunca
mais todos precisassem se espremer daquele jeito enquanto ficavam juntos.
sexta-feira, 7 de junho de 2013
Uma conversa com o Juninho
- Eveline, agora você vai sempre, assim, escrever essas
coisas que não são de cientistas?
- Como assim, Juninho?
- Essas historinhas.
- Ah, Juninho, as historinhas são parte dos textos de
cientista. Vou continuar escrevendo até
o fim do ano.
- Eu queria que você escrevesse a história da minha vida...
- Da sua vida?
- É, da minha vida.
- Juninho, você tem oito anos! Não tá um pouco cedo, não?
Malditos ídolos adolescentes. Depois que lançaram a
biografia do Justin Bieber aos 15 anos, a percepção das crianças sobre o que é
uma biografia ficou bem distorcida.
- Acho que não, acho a história da minha vida
interessante. Queria que você
escrevesse. Quando eu estiver bem velho, igual minha bisa, eu leio a história e
me lembro de como foi.
Eu me preocupo com crianças assim. Crianças que pensam em Alzheimer aos oito
anos de idade. Pois como eu fui uma
criança que se preocupava com a extinção das baleias aos oito anos, conheço os
efeitos colaterais. Não quero que ele tenha
gastrite aos 17.
- Você não tem que se estressar com isso. Sua bisa se lembra de quando ela era criança,
ela não lembra do que comeu no almoço. É
normal, eu também não me lembro mais o que eu comi ontem.
- Eu quero que você escreva mesmo assim. Eu gosto da
história da minha vida, sabe? O jeito que eu nasci é diferente.
- Você está falando da história da sua mãe Dayana e da sua
mãe Leila? Ah, Juninho, eu também adoro a história, mas eu só escrevo sobre
animais.
- Você não pode colocar os meus cachorros na história?
- Não, Juninho. Não
tinha cachorro nenhum naquela época. E sua
mãe é uma escritora de verdade, uma poeta.
Eu acho que a história é dela, ela que tem que escrever. E eu já te disse, que só escrevo sobre
animais.
- É aquela parada que você diz? Que só escreve sobre o que
conhece?
Tem gente que sente
prazer em aparecer numa coluna social. Tem gente que se infla toda quando é
citada num artigo científico. Tem gente que fica satisfeita de receber várias
curtidas no facebook.
Minha vaidade é quando uma criança repete o que eu
falo. Eu me preocupo em só falar coisas
boas, positivas e ecológicas, com a vã esperança de que isso vai fazer alguma
diferença no futuro do planeta. Mas a
criança vai lá e repete a sua mania mais horrorosa: falar “parada”.
- Isso aí. Eu só conheço animais, não sei nada sobre gente.
Você sabe disso.
Juninho saiu sem me dar resposta, em direção à piscina. De
repente, deu meia volta e veio firme na minha direção.
- Sabe o que eu não entendo, Eveline?
- O que, Juninho?
- Você não vive dizendo que eu sou um animal? Que somos iguais a qualquer outro
animal? Que a vida do cachorro não vale
menos que a minha?
- Você quer que eu comece a escrever a história da sua vida agora
ou vai ser depois da piscina?
sexta-feira, 31 de maio de 2013
São Francisco de Assis
“Os santos mantêm os olhos fixos em Deus. Permanecem fiéis,
e é por isso que são santos, não por serem invariavelmente modelos de conduta
polida ou mesmo imitável”. Donald Spoto
Geralmente, as pessoas se esquecem que os santos , antes de
serem santos, eram homens e mulheres.
Eram pessoas comuns que fizeram coisas extraordinárias. Mas passaram pelas mesmas coisas que nós,
tiveram que viver neste mesmo mundo complicado – cheio de doses desiguais de
amargura e beleza. Quase todos foram
considerados loucos pelos seus contemporâneos.
O que diríamos de São Francisco nos dias de hoje? Um maluco
beleza? Um esquizofrênico ? Um pai mais paranoico não internaria esse
rapaz numa clínica para viciados? Ou
quem sabe levaria para um tratamento espiritual. Imagine ter um filho que decidiu largar o
dinheiro e o conforto para abraçar a
missão de reconstruir uma igrejinha em ruínas.
Em 2013, quem seria Francisco? Você conversaria com ele? Aceitaria que ele prestasse algum serviço na
sua casa, em troca de um prato de comida?
Pois era isso que ele fazia.
Vivia com o mínimo, trabalhando pelo sustento de cada dia. Vendia o almoço para comprar a janta, como dizemos.
Não me espantaria que um Francisco nascido hoje tomasse do
Francisco de Assis o título de santo dos animais. Atualmente, um homem com a proposta de vida
de São Francisco só teria mesmo os animais com quem conversar. A nossa sociedade viraria as costas para ele
de forma muito mais radical – oprimidos que estamos pelo medo da violência, da
pobreza, da diferença...
Francisco de Assis também tratava dos leprosos. Certa vez, uma repórter com quem trabalhei se
recusou a fazer uma matéria com uma família de leprosos. Ela alegou que tinha filhos e não queria
pegar a doença. Sim. Acredite. Uma jornalista do século XXI reproduziu todo o
ódio, ignorância e intolerância que eu julgava sepultados há séculos. Era 23 de dezembro e nunca me doeu tanto uma
matéria não feita. Aquela mulher ia
passar a noite de Natal falando de Jesus, rezando... Os filhos dela jamais vão
saber que, por causa da mãe, uma família inteira estava passando o Natal na
sombra, consumida pela doença, sem que a omissão do estado fosse denunciada. Ela foi até a direção da empresa para evitar
que a matéria fosse feita. Não bastava
ser preconceituosa, tinha que espalhar essa visão míope para os altos escalões.
Imagino essa mulher passando por Francisco de Assis na
rua. Será que ela teria coragem de
cruzar com ele na calçada? Ou
atravessaria correndo? Sim, os santos
são esses malucos que andam entre os leprosos, que pegam bichos na rua, que
ajudam a enxugar as lágrimas de um desconhecido na fila do ganha tempo...
Francisco hoje seria mais um maluco. Então, quando alguém entra na minha casa e vê
todas as imagens que tenho de São Francisco, geralmente me pergunta: “Nossa,
você é super devota dele, né?” Não. Não
é bem isso. Porque é mais do que isso.
São Francisco está na minha casa como estão as imagens das minhas
avós. Outro dia, me peguei chorando
enquanto falava sobre ele para uma amiga.
As mesmas lágrimas que me brotam nos olhos quando falo delas. Ele foi uma pessoa que esteve nesse mundo e
que me inspira, que me ensina, que me ajudou a ser quem eu sou... Exatamente
como as minhas avós. Não é
idolatria. É só um jeito de tê-los por
perto dos olhos.
Muitas são as pessoas que acham que São Francisco é o santo
dos animais porque ele sempre foi um ecologista, que soube amar toda forma de
vida deste planeta. Ele está sempre
entre bichos nas imagens. Há muitos anos,
estudo a vida dele tanto sob a perspectiva histórica quanto religiosa. Não preciso nem dizer também o quanto estudo
a vida dos animais. De repente,
reelaborei essa visão sobre São Francisco.
No nosso planeta, os animais vivem e persistem
exclusivamente pela caridade alheia. Materialmente,
vivem o presente. Os animais de rua conseguem
o sustento daquele dia. Escapam dos
perigos daquele dia. Quando caem doentes, só a bondade alheia pode
ampará-los. Os animais silvestres
habitam as manchas de vegetação que deixamos para eles, nadam por entre o lixo
que despejamos no mar. Das nossas decisões, boas ou ruins, dependem os destinos
deles.
Era assim que São Francisco vivia. Sem posses, sem acumulo,
sem poupança... Francisco de Assis vivia
do que recebia naquele dia. Para mim, é
por isso que ele se tornou o Santo dos Animais, porque ele soube o que é ser
um. Tanto por ocupar um lugar
marginalizado na sociedade quanto por sua filosofia de vida. Como os animais, ele vivia da misericórdia de
Deus.
Não estou dizendo que loucos são santos, que protetores
santos nem que quem ampara desconhecidos é santo... Mas acho que qualquer um
pode ser santo.
OBS: Liguei para
outra emissora de TV e a matéria com a família que tinha hanseníase foi feita
pela concorrência. As pessoas receberam
o tratamento adequado e somente um dos parentes não se recuperou completamente.
Eu pedi demissão, mudei de cidade e fui cuidar da vida.
Todos foram felizes para sempre. Sobre a repórter, eu não sei. Não aceitei o pedido de amizade dela no
facebook para evitar um episódio de sincericídio da minha parte.
quinta-feira, 23 de maio de 2013
A história de Duda
Uma propaganda de farmácia me inspirou hoje. É a História de Sofia, da Drogaria Panvel. Me remeteu a uma amizade desfeita que me custou a separação de uma cachorrinha que eu muito amava. É mais ou menos assim:
Essa história me lembrou uma amiga que tive. Era uma amiga
muito exigente. Ligava tarde da noite,
mandava mensagem as sete da manhã. Nunca
tinha um bom dia no texto. As ligações
eram sempre para discutir problemas ou reclamar de algo. Ela jamais me telefonou para saber se eu ia
bem. Jamais conversou comigo sobre essas
besteiras que amigas falam. Ela não sabe
meu livro preferido nem qual o tipo de condicionador que eu uso. Mesmo assim, eu adorava ela. Não sei pq, mas adorava do fundo do coração,
considerava uma irmã.
Um dia, numa crise de coluna, precisei da ajuda dela
desesperadamente. Liguei. Deu aquele
sinal de quando a pessoa desliga o telefone. Mandei mensagem. A operadora
retornou dizendo que a mensagem tinha sido recebida. Mas ela não me ligou de
volta. Uma desconhecida me acudiu. Estava passando a porta da minha casa, não
sabia quem eu era. Mas me ajudou. O
médico me mandou cortar as amizades, pq coração partido também dá dor na
coluna. E não é só homem que parte o coração da gente. Ele me disse: "esse tipo de amigo anda
vai te deixar na cadeira de rodas". Meu tratamento incluiu cortar a vida
social, atender menos o telefone, passar mais tempo descansando. Os jantares, que eu amava fazer, foram
proibidos. Sobrecarregam a coluna. Os
amigos, é claro, sumiram. Essa amiga, em especial, e mais uma outra, pararam de
nos chamar para sair. Jantares, festas,
cinemas, viagens, fomos excluídos de tudo.
Quer dizer, nem tudo. Ainda havia
as ligações e mensagens utilitárias. Se
precisasse de algo lembrava do número do meu telefone.
Meu médico, ao saber
dos desdobramentos do caso, sorriu, vitorioso. "Amigo de manquitola",
ele disse, brincando, "é coisa rara. Mas pode contar que quem estiver do
seu lado agora, vai estar pela vida toda".
O mundo continuou girando. Voltei a andar em cima das duas pernas, parei
de mancar e as dores diminuíram. Só
sobrevivi ao período crítico porque dezenas de pessoas me ampararam no sentido
mais literal do termo. Tive que ser
carregada, apoiada, empurrada... Me ajudaram até mesmo a carregar uma cadeira
que preciso levar para todos os lados, pq não dou conta de sentar em outro tipo
de cadeira.
Aquela ferida fechou. Cicatrizou até bem demais. Aquele
episódio estava encerrado na minha vida. Logo chegou o dia em que a saúde me permitiu caminhar
um pouco. E então, veio o choque. Passei pela porta da casa da agora ex-amiga e
a cachorra latiu ao ouvir minha voz.
Aquele latido doeu mais do que todas as decepções que passei. Eu amava extremamente aquela
cachorrinha. Elaborei a perda da amiga,
estava tudo bem. Mas tinha esquecido da
minha companheira peluda, que tantas vezes pulou no meu colo feito uma criança,
não sabendo por onde extravasar a felicidade em me encontrar.
Será que a cachorra não tinha me esquecido? Tentei me convencer de que havia sido uma
coincidência. Na noite seguinte, passei
pela porta e, novamente, veio o latido. Chorei
muito. Mas trabalho com ciência e,
apesar de não ser cartesiana, tenho que dar satisfações a mim mesma pois me
acostumei a ser incrédula. Esperei alguns dias e passei de novo. Os latidos se
repetiram.
Meu marido me olhou e disse apenas: “eu entendo sua relação
com os animais”. Acho que naquele
momento, ele compreendeu totalmente o tipo de amizade que um bicho nos
proporciona. A cachorra tinha amor por
mim. Um amor que as pessoas nunca tiveram. A verdadeira amizade estava perto do
chão, sobre quatro patas e com uns olhos pretos enormes. Não tem a ver com dinheiro, com posses, com
serviços prestados... Não tem a ver com afinidades, com gostos, muito menos com
histórico de vida. É uma troca
completamente diferente, que as palavras não alcançam. Essa troca acontece entre pessoas, mas é
muito mais frequente quando nos relacionamos com animais. Que outra criatura é capaz de morrer de
alegria por te reencontrar depois de vc ter ido lá fora jogar o lixo – durante o
impressionante intervalo de 28 segundos?
Parei de passar naquela rua específica. Me dei
conta de que havia perdido definitivamente uma grande amizade. Do outro lado da
porta, havia alguém que me amava, que queria estar ao meu lado, que se alegrava
só de ouvir minha voz. Se eu tivesse
imaginado que a cachorrinha sentiria saudades, teria engolido uns sapos, teria feito
mais serviços de office girl, teria cedido meu ouvido mil vezes mais... Pois eu
ainda a amo da mesma maneira. Mas na
minha miopia, achei que de todos os envolvidos, a cachorra seria a última a sofrer
com a minha ausência. E, provavelmente,
ela foi a única que realmente sentiu a minha falta.
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