Essa história me lembrou uma amiga que tive. Era uma amiga
muito exigente. Ligava tarde da noite,
mandava mensagem as sete da manhã. Nunca
tinha um bom dia no texto. As ligações
eram sempre para discutir problemas ou reclamar de algo. Ela jamais me telefonou para saber se eu ia
bem. Jamais conversou comigo sobre essas
besteiras que amigas falam. Ela não sabe
meu livro preferido nem qual o tipo de condicionador que eu uso. Mesmo assim, eu adorava ela. Não sei pq, mas adorava do fundo do coração,
considerava uma irmã.
Um dia, numa crise de coluna, precisei da ajuda dela
desesperadamente. Liguei. Deu aquele
sinal de quando a pessoa desliga o telefone. Mandei mensagem. A operadora
retornou dizendo que a mensagem tinha sido recebida. Mas ela não me ligou de
volta. Uma desconhecida me acudiu. Estava passando a porta da minha casa, não
sabia quem eu era. Mas me ajudou. O
médico me mandou cortar as amizades, pq coração partido também dá dor na
coluna. E não é só homem que parte o coração da gente. Ele me disse: "esse tipo de amigo anda
vai te deixar na cadeira de rodas". Meu tratamento incluiu cortar a vida
social, atender menos o telefone, passar mais tempo descansando. Os jantares, que eu amava fazer, foram
proibidos. Sobrecarregam a coluna. Os
amigos, é claro, sumiram. Essa amiga, em especial, e mais uma outra, pararam de
nos chamar para sair. Jantares, festas,
cinemas, viagens, fomos excluídos de tudo.
Quer dizer, nem tudo. Ainda havia
as ligações e mensagens utilitárias. Se
precisasse de algo lembrava do número do meu telefone.
Meu médico, ao saber
dos desdobramentos do caso, sorriu, vitorioso. "Amigo de manquitola",
ele disse, brincando, "é coisa rara. Mas pode contar que quem estiver do
seu lado agora, vai estar pela vida toda".
O mundo continuou girando. Voltei a andar em cima das duas pernas, parei
de mancar e as dores diminuíram. Só
sobrevivi ao período crítico porque dezenas de pessoas me ampararam no sentido
mais literal do termo. Tive que ser
carregada, apoiada, empurrada... Me ajudaram até mesmo a carregar uma cadeira
que preciso levar para todos os lados, pq não dou conta de sentar em outro tipo
de cadeira.
Aquela ferida fechou. Cicatrizou até bem demais. Aquele
episódio estava encerrado na minha vida. Logo chegou o dia em que a saúde me permitiu caminhar
um pouco. E então, veio o choque. Passei pela porta da casa da agora ex-amiga e
a cachorra latiu ao ouvir minha voz.
Aquele latido doeu mais do que todas as decepções que passei. Eu amava extremamente aquela
cachorrinha. Elaborei a perda da amiga,
estava tudo bem. Mas tinha esquecido da
minha companheira peluda, que tantas vezes pulou no meu colo feito uma criança,
não sabendo por onde extravasar a felicidade em me encontrar.
Será que a cachorra não tinha me esquecido? Tentei me convencer de que havia sido uma
coincidência. Na noite seguinte, passei
pela porta e, novamente, veio o latido. Chorei
muito. Mas trabalho com ciência e,
apesar de não ser cartesiana, tenho que dar satisfações a mim mesma pois me
acostumei a ser incrédula. Esperei alguns dias e passei de novo. Os latidos se
repetiram.
Meu marido me olhou e disse apenas: “eu entendo sua relação
com os animais”. Acho que naquele
momento, ele compreendeu totalmente o tipo de amizade que um bicho nos
proporciona. A cachorra tinha amor por
mim. Um amor que as pessoas nunca tiveram. A verdadeira amizade estava perto do
chão, sobre quatro patas e com uns olhos pretos enormes. Não tem a ver com dinheiro, com posses, com
serviços prestados... Não tem a ver com afinidades, com gostos, muito menos com
histórico de vida. É uma troca
completamente diferente, que as palavras não alcançam. Essa troca acontece entre pessoas, mas é
muito mais frequente quando nos relacionamos com animais. Que outra criatura é capaz de morrer de
alegria por te reencontrar depois de vc ter ido lá fora jogar o lixo – durante o
impressionante intervalo de 28 segundos?
Parei de passar naquela rua específica. Me dei
conta de que havia perdido definitivamente uma grande amizade. Do outro lado da
porta, havia alguém que me amava, que queria estar ao meu lado, que se alegrava
só de ouvir minha voz. Se eu tivesse
imaginado que a cachorrinha sentiria saudades, teria engolido uns sapos, teria feito
mais serviços de office girl, teria cedido meu ouvido mil vezes mais... Pois eu
ainda a amo da mesma maneira. Mas na
minha miopia, achei que de todos os envolvidos, a cachorra seria a última a sofrer
com a minha ausência. E, provavelmente,
ela foi a única que realmente sentiu a minha falta.
Lindas histórias Eveline, a sua e a da Pavanel, a vontade é de correr pra casa e abraçar a s minhas felpudas.
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