domingo, 23 de junho de 2013

Alexandre Pequeno e as cinco gatinhas


Recentemente, num curso com a escritora Noemi Jaffe, ganhei um presente:  um personagem.  Alexandre Pequeno, criação do Edérson Fernandes de Souza.  Alexandre Pequeno não é um adolescente qualquer.  Ele foi criado pela avó, é bipolar, sonha em ser traficante e, para completar, seu grande sonho é ir para o motel com cinco gatinhas. Minha missão era criar um conto com ele.
Como eu sou a prova viva de que um amigo animal pode nos ajudar a enfrentar qualquer dificuldade da vida, a história ficou assim:



- Alexandre? Alexandre, olha para a minha cara.  Eu não vou falar de novo. Olha aqui, olha bem no meu olho.

- Ai, Vó, pelo amor de Deus! Você acha que é fácil?  

- Não grita comigo, que não foi essa educação que eu te dei! Quem grita aqui sou eu! Eu que sustento essa casa. Quem grita aqui sou eu! Olha para mim, que eu vou falar. Eu não quero mais que você diga essas coisas para os seus amigos!  Qualquer dia, a polícia vai bater aqui!

- A senhora acha que é fácil? Acha que é fácil se chamar Alexandre Pequeno Júnior?  Como a senhora acha que eu vou sobreviver na escola?

- Olha, moleque, eu não sei como você vai sobreviver, mas não vai ser dizendo para os outros que você é irmão do Zé Pequeno, da Cidade de Deus, que você vai resolver isso! Os vizinhos estão falando que eu escondo drogas em casa!

-  Só por Deus!  Eu preciso de respeito, Vó, eu não aguento mais ser humilhado. A senhora ainda foi dizer para a vizinha que eu nasci na Argentina. Um negócio que aconteceu por acidente!  Puta merda!

- Bate na boca! Bate na boca agora, eu tô mandando!

- Tá bom, Vó! Fala baixo, já bati!

- Olha, Alexandre, estamos entendidos?  Eu não tenho culpa do que aconteceu quando você nasceu.  Eu faço a minha parte!  Chega dessa história de querer ser traficante, chega dessas invenções de Zé Pequeno!

- Mas minha mãe era traficante!  Ela entrou em trabalho de parto cruzando a fronteira com maconha!

- Alexandre, olha para mim, me escuta: sua mãe era muambeira.  Ela  foi para Foz do Iguaçu comprar perfume, batom 24 horas, raquito de sol e tesourinha dobrável!  Ela nunca foi traficante.  E ela estava morando na Argentina por causa do seu pai.  Você tem que aceitar que você é filho de um garçom argentino com uma muambeira brasileira.  

- Fala agora, vó, que minha mãe me largou aqui e sumiu no mundo! Essa infeliz! Nem para me arrumar um pai chamado Alexandre Grande, tinha que ser um Alexandre Pequeno?

-  Você quer que eu te console?  Porque tem um consolo nisso tudo, Alexandre.  

- Tem, Vó? A senhora acha que tem algum consolo? Se a senhora nem me deixa tentar defender a minha honra.

- Pelo menos ela te largou aqui enquanto você ainda era bebê. Seria muito pior se ela tivesse esperado mais, porque daí, além de ser pequeno você ainda ia ter sotaque argentino.  Aí você ia ver  que que é viver no inferno!  Eu faço tudo que posso para te ver feliz.

- Eu sei, eu sei.  Eu tenho que parar com essa mania de contrariar a senhora.

- Alexandre, meu filho, a culpa não é sua. Isso não é mania. Você é bipolar.  Se você não tomar os remédios.  Nossa vida vai ser sempre assim.  Você tem que tomar os remédios e se conformar.  


- Ela podia ter colocado pelo menos o sobrenome da senhora também, né? Assim eu teria outro sobrenome para falar para os outros.  Se eu fosse Alexandre Pinto Peq... Ah, deixa essa porcaria para lá.  Eu vou para o quarto.  Eu tô de castigo, não tô?

- Tá.  Toda vez que você falar para alguém essa idiotice de Zé Pequeno, vai ficar de castigo, mesmo sendo um burro velho de 15 anos. Comigo é assim, é no castigo.

- Com essa vida que eu tenho é melhor mesmo ficar no quarto com elas...

- Isso, vai ficar com elas.  

Alexandre entrou no quarto e se jogou na cama. Queria muito chorar.  Mas sabia que traficante não pode ser bundão.  Essa coisa de chorar não pega bem.  As cinco gatinhas foram se aproximando dele, tomando conta do colchão de solteiro,  já coalhado dos pelos brancos que elas viviam soltando.  Mimi, Ninoca, Dora, Docinho e Shee-ta-ra.  A vida era ruim, mas desde que pegou as cinco num caixa de papelão jogada na porta escola, pelo menos já não era tudo tão solitário.  Quando fosse um traficante bem sucedido, iria sair dali e realizar seu grande sonho:  morar num quarto de motel com as cinco gatinhas, no melhor quarto, com a cama mais espaçosa e macia, para que nunca mais todos precisassem se espremer daquele jeito enquanto ficavam juntos.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Uma conversa com o Juninho



- Eveline, agora você vai sempre, assim, escrever essas coisas que não são de cientistas?
- Como assim, Juninho? 
- Essas historinhas.
- Ah, Juninho, as historinhas são parte dos textos de cientista.  Vou continuar escrevendo até o fim do ano.
- Eu queria que você escrevesse a história da minha vida...
- Da sua vida?
- É, da minha vida.
- Juninho, você tem oito anos!  Não tá um pouco cedo, não?

Malditos ídolos adolescentes. Depois que lançaram a biografia do Justin Bieber aos 15 anos, a percepção das crianças sobre o que é uma biografia ficou bem distorcida.

- Acho que não, acho a história da minha vida interessante.  Queria que você escrevesse. Quando eu estiver bem velho, igual minha bisa, eu leio a história e me lembro de como foi. 

Eu me preocupo com crianças assim.  Crianças que pensam em Alzheimer aos oito anos de idade.  Pois como eu fui uma criança que se preocupava com a extinção das baleias aos oito anos, conheço os efeitos colaterais.  Não quero que ele tenha gastrite aos 17. 

- Você não tem que se estressar com isso.  Sua bisa se lembra de quando ela era criança, ela não lembra do que comeu no almoço.  É normal, eu também não me lembro mais o que eu comi ontem.
- Eu quero que você escreva mesmo assim. Eu gosto da história da minha vida, sabe? O jeito que eu nasci é diferente.
- Você está falando da história da sua mãe Dayana e da sua mãe Leila? Ah, Juninho, eu também adoro a história, mas eu só escrevo sobre animais.
- Você não pode colocar os meus cachorros na história?
- Não, Juninho.  Não tinha cachorro nenhum naquela época.  E sua mãe é uma escritora de verdade, uma poeta.  Eu acho que a história é dela, ela que tem que escrever.  E eu já te disse, que só escrevo sobre animais. 
- É aquela parada que você diz? Que só escreve sobre o que conhece?

Tem gente que sente prazer em aparecer numa coluna social. Tem gente que se infla toda quando é citada num artigo científico. Tem gente que fica satisfeita de receber várias curtidas no facebook. 

Minha vaidade é quando uma criança repete o que eu falo.   Eu me preocupo em só falar coisas boas, positivas e ecológicas, com a vã esperança de que isso vai fazer alguma diferença no futuro do planeta.  Mas a criança vai lá e repete a sua mania mais horrorosa:  falar “parada”.

- Isso aí. Eu só conheço animais, não sei nada sobre gente. Você sabe disso.
Juninho saiu sem me dar resposta, em direção à piscina. De repente, deu meia volta e veio firme na minha direção.
- Sabe o que eu não entendo, Eveline?
- O que, Juninho?
- Você não vive dizendo que eu sou um animal?  Que somos iguais a qualquer outro animal?  Que a vida do cachorro não vale menos que a minha?
- Você quer que eu comece a escrever a história da sua vida agora ou vai ser depois da piscina?

sexta-feira, 31 de maio de 2013

São Francisco de Assis

“Os santos mantêm os olhos fixos em Deus. Permanecem fiéis, e é por isso que são santos, não por serem invariavelmente modelos de conduta polida ou mesmo imitável”.  Donald Spoto

Geralmente, as pessoas se esquecem que os santos , antes de serem santos, eram homens e mulheres.  Eram pessoas comuns que fizeram coisas extraordinárias.  Mas passaram pelas mesmas coisas que nós, tiveram que viver neste mesmo mundo complicado – cheio de doses desiguais de amargura e beleza.   Quase todos foram considerados loucos pelos seus contemporâneos. 

O que diríamos de São Francisco nos dias de hoje? Um maluco beleza?   Um esquizofrênico ?  Um pai mais paranoico não internaria esse rapaz numa clínica para viciados?  Ou quem sabe levaria para um tratamento espiritual.  Imagine ter um filho que decidiu largar o dinheiro e  o conforto para abraçar a missão de reconstruir uma igrejinha em ruínas.

Em 2013, quem seria Francisco?  Você conversaria com ele?  Aceitaria que ele prestasse algum serviço na sua casa, em troca de um prato de comida?  Pois era isso que ele fazia.  Vivia com o mínimo, trabalhando pelo sustento de cada dia.  Vendia o almoço para comprar a janta, como dizemos.

Não me espantaria que um Francisco nascido hoje tomasse do Francisco de Assis o título de santo dos animais.   Atualmente, um homem com a proposta de vida de São Francisco só teria mesmo os animais com quem conversar.  A nossa sociedade viraria as costas para ele de forma muito mais radical – oprimidos que estamos pelo medo da violência, da pobreza, da diferença...

Francisco de Assis também tratava dos leprosos.  Certa vez, uma repórter com quem trabalhei se recusou a fazer uma matéria com uma família de leprosos.  Ela alegou que tinha filhos e não queria pegar a doença.  Sim.  Acredite.  Uma jornalista do século XXI reproduziu todo o ódio, ignorância e intolerância que eu julgava sepultados há séculos.  Era 23 de dezembro e nunca me doeu tanto uma matéria não feita.  Aquela mulher ia passar a noite de Natal falando de Jesus, rezando... Os filhos dela jamais vão saber que, por causa da mãe, uma família inteira estava passando o Natal na sombra, consumida pela doença, sem que a omissão do estado fosse denunciada.  Ela foi até a direção da empresa para evitar que a matéria fosse feita.  Não bastava ser preconceituosa, tinha que espalhar essa visão míope para os altos escalões.

Imagino essa mulher passando por Francisco de Assis na rua.  Será que ela teria coragem de cruzar com ele na calçada?  Ou atravessaria correndo?  Sim, os santos são esses malucos que andam entre os leprosos, que pegam bichos na rua, que ajudam a enxugar as lágrimas de um desconhecido na fila do ganha tempo...
Francisco hoje seria mais um maluco.  Então, quando alguém entra na minha casa e vê todas as imagens que tenho de São Francisco, geralmente me pergunta: “Nossa, você é super devota dele, né?”  Não. Não é bem isso. Porque é mais do que isso.  São Francisco está na minha casa como estão as imagens das minhas avós.  Outro dia, me peguei chorando enquanto falava sobre ele para uma amiga.  As mesmas lágrimas que me brotam nos olhos quando falo delas.   Ele foi uma pessoa que esteve nesse mundo e que me inspira, que me ensina, que me ajudou a ser quem eu sou... Exatamente como as minhas avós.  Não é idolatria.  É só um jeito de tê-los por perto dos olhos.

Muitas são as pessoas que acham que São Francisco é o santo dos animais porque ele sempre foi um ecologista, que soube amar toda forma de vida deste planeta.  Ele está sempre entre bichos nas imagens.  Há muitos anos, estudo a vida dele tanto sob a perspectiva histórica quanto religiosa.  Não preciso nem dizer também o quanto estudo a vida dos animais.  De repente, reelaborei essa visão sobre São Francisco. 
No nosso planeta, os animais vivem e persistem exclusivamente pela caridade alheia.  Materialmente, vivem o presente.  Os animais de rua conseguem o sustento daquele dia.  Escapam dos perigos daquele dia. Quando caem doentes, só a bondade alheia pode ampará-los.  Os animais silvestres habitam as manchas de vegetação que deixamos para eles, nadam por entre o lixo que despejamos no mar. Das nossas decisões, boas ou ruins, dependem os destinos deles.

Era assim que São Francisco vivia. Sem posses, sem acumulo, sem poupança...   Francisco de Assis vivia do que recebia naquele dia.  Para mim, é por isso que ele se tornou o Santo dos Animais, porque ele soube o que é ser um.  Tanto por ocupar um lugar marginalizado na sociedade quanto por sua filosofia de vida.  Como os animais, ele vivia da misericórdia de Deus. 

Não estou dizendo que loucos são santos, que protetores santos nem que quem ampara desconhecidos é santo... Mas acho que qualquer um pode ser santo.


OBS:  Liguei para outra emissora de TV e a matéria com a família que tinha hanseníase foi feita pela concorrência.  As pessoas receberam o tratamento adequado e somente um dos parentes não se recuperou completamente. Eu pedi demissão, mudei de cidade e fui cuidar da vida.  Todos foram felizes para sempre. Sobre a repórter, eu não sei.  Não aceitei o pedido de amizade dela no facebook para evitar um episódio de sincericídio da minha parte.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A história de Duda

Uma propaganda de farmácia me inspirou hoje.  É a História de Sofia, da Drogaria Panvel. Me remeteu a  uma amizade desfeita que me custou a separação de uma cachorrinha que eu muito amava.  É mais ou menos assim:  


Essa história me lembrou uma amiga que tive. Era uma amiga muito exigente.  Ligava tarde da noite, mandava mensagem as sete da manhã.  Nunca tinha um bom dia no texto.  As ligações eram sempre para discutir problemas ou reclamar de algo.  Ela jamais me telefonou para saber se eu ia bem.  Jamais conversou comigo sobre essas besteiras que amigas falam.  Ela não sabe meu livro preferido nem qual o tipo de condicionador que eu uso.  Mesmo assim, eu adorava ela.  Não sei pq, mas adorava do fundo do coração, considerava uma irmã.

Um dia, numa crise de coluna, precisei da ajuda dela desesperadamente.  Liguei. Deu aquele sinal de quando a pessoa desliga o telefone. Mandei mensagem. A operadora retornou dizendo que a mensagem tinha sido recebida. Mas ela não me ligou de volta.  Uma desconhecida me acudiu.  Estava passando a porta da minha casa, não sabia quem eu era. Mas me ajudou.  O médico me mandou cortar as amizades, pq coração partido também dá dor na coluna. E não é só homem que parte o coração da gente.  Ele me disse: "esse tipo de amigo anda vai te deixar na cadeira de rodas". Meu tratamento incluiu cortar a vida social, atender menos o telefone, passar mais tempo descansando.  Os jantares, que eu amava fazer, foram proibidos. Sobrecarregam a coluna.  Os amigos, é claro, sumiram. Essa amiga, em especial, e mais uma outra, pararam de nos chamar para sair.  Jantares, festas, cinemas, viagens, fomos excluídos de tudo.  Quer dizer, nem tudo.  Ainda havia as ligações e mensagens utilitárias.  Se precisasse de algo lembrava do número do meu telefone.

 Meu médico, ao saber dos desdobramentos do caso, sorriu, vitorioso. "Amigo de manquitola", ele disse, brincando, "é coisa rara. Mas pode contar que quem estiver do seu lado agora, vai estar pela vida toda".  O mundo continuou girando.   Voltei a andar em cima das duas pernas, parei de mancar e as dores diminuíram.  Só sobrevivi ao período crítico porque dezenas de pessoas me ampararam no sentido mais literal do termo.   Tive que ser carregada, apoiada, empurrada... Me ajudaram até mesmo a carregar uma cadeira que preciso levar para todos os lados, pq não dou conta de sentar em outro tipo de cadeira. 

Aquela ferida fechou. Cicatrizou até bem demais.   Aquele episódio estava encerrado na minha vida.  Logo chegou o dia em que a saúde me permitiu caminhar um pouco.  E então, veio o choque.  Passei pela porta da casa da agora ex-amiga e a cachorra latiu ao ouvir minha voz.  Aquele latido doeu mais do que todas as decepções que passei.  Eu amava extremamente aquela cachorrinha.  Elaborei a perda da amiga, estava tudo bem.  Mas tinha esquecido da minha companheira peluda, que tantas vezes pulou no meu colo feito uma criança, não sabendo por onde extravasar a felicidade em me encontrar. 

Será que a cachorra não tinha me esquecido?  Tentei me convencer de que havia sido uma coincidência.  Na noite seguinte, passei pela porta e, novamente, veio o latido.  Chorei muito.  Mas trabalho com ciência e, apesar de não ser cartesiana, tenho que dar satisfações a mim mesma pois me acostumei a ser incrédula. Esperei alguns dias e passei de novo. Os latidos se repetiram. 

Meu marido me olhou e disse apenas: “eu entendo sua relação com os animais”.  Acho que naquele momento, ele compreendeu totalmente o tipo de amizade que um bicho nos proporciona.  A cachorra tinha amor por mim. Um amor que as pessoas nunca tiveram. A verdadeira amizade estava perto do chão, sobre quatro patas e com uns olhos pretos enormes.  Não tem a ver com dinheiro, com posses, com serviços prestados... Não tem a ver com afinidades, com gostos, muito menos com histórico de vida.  É uma troca completamente diferente, que as palavras não alcançam.  Essa troca acontece entre pessoas, mas é muito mais frequente quando nos relacionamos com animais.   Que outra criatura é capaz de morrer de alegria por te reencontrar depois de vc ter ido lá fora jogar o lixo – durante o impressionante intervalo de 28 segundos? 

Parei de passar naquela rua específica.   Me dei conta de que havia perdido definitivamente uma grande amizade. Do outro lado da porta, havia alguém que me amava, que queria estar ao meu lado, que se alegrava só de ouvir minha voz.  Se eu tivesse imaginado que a cachorrinha sentiria saudades, teria engolido uns sapos, teria feito mais serviços de office girl, teria cedido meu ouvido mil vezes mais... Pois eu ainda a amo da mesma maneira.   Mas na minha miopia, achei que de todos os envolvidos, a cachorra seria a última a sofrer com a minha ausência.  E, provavelmente, ela foi a única que realmente sentiu a minha falta.