sexta-feira, 31 de maio de 2013

São Francisco de Assis

“Os santos mantêm os olhos fixos em Deus. Permanecem fiéis, e é por isso que são santos, não por serem invariavelmente modelos de conduta polida ou mesmo imitável”.  Donald Spoto

Geralmente, as pessoas se esquecem que os santos , antes de serem santos, eram homens e mulheres.  Eram pessoas comuns que fizeram coisas extraordinárias.  Mas passaram pelas mesmas coisas que nós, tiveram que viver neste mesmo mundo complicado – cheio de doses desiguais de amargura e beleza.   Quase todos foram considerados loucos pelos seus contemporâneos. 

O que diríamos de São Francisco nos dias de hoje? Um maluco beleza?   Um esquizofrênico ?  Um pai mais paranoico não internaria esse rapaz numa clínica para viciados?  Ou quem sabe levaria para um tratamento espiritual.  Imagine ter um filho que decidiu largar o dinheiro e  o conforto para abraçar a missão de reconstruir uma igrejinha em ruínas.

Em 2013, quem seria Francisco?  Você conversaria com ele?  Aceitaria que ele prestasse algum serviço na sua casa, em troca de um prato de comida?  Pois era isso que ele fazia.  Vivia com o mínimo, trabalhando pelo sustento de cada dia.  Vendia o almoço para comprar a janta, como dizemos.

Não me espantaria que um Francisco nascido hoje tomasse do Francisco de Assis o título de santo dos animais.   Atualmente, um homem com a proposta de vida de São Francisco só teria mesmo os animais com quem conversar.  A nossa sociedade viraria as costas para ele de forma muito mais radical – oprimidos que estamos pelo medo da violência, da pobreza, da diferença...

Francisco de Assis também tratava dos leprosos.  Certa vez, uma repórter com quem trabalhei se recusou a fazer uma matéria com uma família de leprosos.  Ela alegou que tinha filhos e não queria pegar a doença.  Sim.  Acredite.  Uma jornalista do século XXI reproduziu todo o ódio, ignorância e intolerância que eu julgava sepultados há séculos.  Era 23 de dezembro e nunca me doeu tanto uma matéria não feita.  Aquela mulher ia passar a noite de Natal falando de Jesus, rezando... Os filhos dela jamais vão saber que, por causa da mãe, uma família inteira estava passando o Natal na sombra, consumida pela doença, sem que a omissão do estado fosse denunciada.  Ela foi até a direção da empresa para evitar que a matéria fosse feita.  Não bastava ser preconceituosa, tinha que espalhar essa visão míope para os altos escalões.

Imagino essa mulher passando por Francisco de Assis na rua.  Será que ela teria coragem de cruzar com ele na calçada?  Ou atravessaria correndo?  Sim, os santos são esses malucos que andam entre os leprosos, que pegam bichos na rua, que ajudam a enxugar as lágrimas de um desconhecido na fila do ganha tempo...
Francisco hoje seria mais um maluco.  Então, quando alguém entra na minha casa e vê todas as imagens que tenho de São Francisco, geralmente me pergunta: “Nossa, você é super devota dele, né?”  Não. Não é bem isso. Porque é mais do que isso.  São Francisco está na minha casa como estão as imagens das minhas avós.  Outro dia, me peguei chorando enquanto falava sobre ele para uma amiga.  As mesmas lágrimas que me brotam nos olhos quando falo delas.   Ele foi uma pessoa que esteve nesse mundo e que me inspira, que me ensina, que me ajudou a ser quem eu sou... Exatamente como as minhas avós.  Não é idolatria.  É só um jeito de tê-los por perto dos olhos.

Muitas são as pessoas que acham que São Francisco é o santo dos animais porque ele sempre foi um ecologista, que soube amar toda forma de vida deste planeta.  Ele está sempre entre bichos nas imagens.  Há muitos anos, estudo a vida dele tanto sob a perspectiva histórica quanto religiosa.  Não preciso nem dizer também o quanto estudo a vida dos animais.  De repente, reelaborei essa visão sobre São Francisco. 
No nosso planeta, os animais vivem e persistem exclusivamente pela caridade alheia.  Materialmente, vivem o presente.  Os animais de rua conseguem o sustento daquele dia.  Escapam dos perigos daquele dia. Quando caem doentes, só a bondade alheia pode ampará-los.  Os animais silvestres habitam as manchas de vegetação que deixamos para eles, nadam por entre o lixo que despejamos no mar. Das nossas decisões, boas ou ruins, dependem os destinos deles.

Era assim que São Francisco vivia. Sem posses, sem acumulo, sem poupança...   Francisco de Assis vivia do que recebia naquele dia.  Para mim, é por isso que ele se tornou o Santo dos Animais, porque ele soube o que é ser um.  Tanto por ocupar um lugar marginalizado na sociedade quanto por sua filosofia de vida.  Como os animais, ele vivia da misericórdia de Deus. 

Não estou dizendo que loucos são santos, que protetores santos nem que quem ampara desconhecidos é santo... Mas acho que qualquer um pode ser santo.


OBS:  Liguei para outra emissora de TV e a matéria com a família que tinha hanseníase foi feita pela concorrência.  As pessoas receberam o tratamento adequado e somente um dos parentes não se recuperou completamente. Eu pedi demissão, mudei de cidade e fui cuidar da vida.  Todos foram felizes para sempre. Sobre a repórter, eu não sei.  Não aceitei o pedido de amizade dela no facebook para evitar um episódio de sincericídio da minha parte.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A história de Duda

Uma propaganda de farmácia me inspirou hoje.  É a História de Sofia, da Drogaria Panvel. Me remeteu a  uma amizade desfeita que me custou a separação de uma cachorrinha que eu muito amava.  É mais ou menos assim:  


Essa história me lembrou uma amiga que tive. Era uma amiga muito exigente.  Ligava tarde da noite, mandava mensagem as sete da manhã.  Nunca tinha um bom dia no texto.  As ligações eram sempre para discutir problemas ou reclamar de algo.  Ela jamais me telefonou para saber se eu ia bem.  Jamais conversou comigo sobre essas besteiras que amigas falam.  Ela não sabe meu livro preferido nem qual o tipo de condicionador que eu uso.  Mesmo assim, eu adorava ela.  Não sei pq, mas adorava do fundo do coração, considerava uma irmã.

Um dia, numa crise de coluna, precisei da ajuda dela desesperadamente.  Liguei. Deu aquele sinal de quando a pessoa desliga o telefone. Mandei mensagem. A operadora retornou dizendo que a mensagem tinha sido recebida. Mas ela não me ligou de volta.  Uma desconhecida me acudiu.  Estava passando a porta da minha casa, não sabia quem eu era. Mas me ajudou.  O médico me mandou cortar as amizades, pq coração partido também dá dor na coluna. E não é só homem que parte o coração da gente.  Ele me disse: "esse tipo de amigo anda vai te deixar na cadeira de rodas". Meu tratamento incluiu cortar a vida social, atender menos o telefone, passar mais tempo descansando.  Os jantares, que eu amava fazer, foram proibidos. Sobrecarregam a coluna.  Os amigos, é claro, sumiram. Essa amiga, em especial, e mais uma outra, pararam de nos chamar para sair.  Jantares, festas, cinemas, viagens, fomos excluídos de tudo.  Quer dizer, nem tudo.  Ainda havia as ligações e mensagens utilitárias.  Se precisasse de algo lembrava do número do meu telefone.

 Meu médico, ao saber dos desdobramentos do caso, sorriu, vitorioso. "Amigo de manquitola", ele disse, brincando, "é coisa rara. Mas pode contar que quem estiver do seu lado agora, vai estar pela vida toda".  O mundo continuou girando.   Voltei a andar em cima das duas pernas, parei de mancar e as dores diminuíram.  Só sobrevivi ao período crítico porque dezenas de pessoas me ampararam no sentido mais literal do termo.   Tive que ser carregada, apoiada, empurrada... Me ajudaram até mesmo a carregar uma cadeira que preciso levar para todos os lados, pq não dou conta de sentar em outro tipo de cadeira. 

Aquela ferida fechou. Cicatrizou até bem demais.   Aquele episódio estava encerrado na minha vida.  Logo chegou o dia em que a saúde me permitiu caminhar um pouco.  E então, veio o choque.  Passei pela porta da casa da agora ex-amiga e a cachorra latiu ao ouvir minha voz.  Aquele latido doeu mais do que todas as decepções que passei.  Eu amava extremamente aquela cachorrinha.  Elaborei a perda da amiga, estava tudo bem.  Mas tinha esquecido da minha companheira peluda, que tantas vezes pulou no meu colo feito uma criança, não sabendo por onde extravasar a felicidade em me encontrar. 

Será que a cachorra não tinha me esquecido?  Tentei me convencer de que havia sido uma coincidência.  Na noite seguinte, passei pela porta e, novamente, veio o latido.  Chorei muito.  Mas trabalho com ciência e, apesar de não ser cartesiana, tenho que dar satisfações a mim mesma pois me acostumei a ser incrédula. Esperei alguns dias e passei de novo. Os latidos se repetiram. 

Meu marido me olhou e disse apenas: “eu entendo sua relação com os animais”.  Acho que naquele momento, ele compreendeu totalmente o tipo de amizade que um bicho nos proporciona.  A cachorra tinha amor por mim. Um amor que as pessoas nunca tiveram. A verdadeira amizade estava perto do chão, sobre quatro patas e com uns olhos pretos enormes.  Não tem a ver com dinheiro, com posses, com serviços prestados... Não tem a ver com afinidades, com gostos, muito menos com histórico de vida.  É uma troca completamente diferente, que as palavras não alcançam.  Essa troca acontece entre pessoas, mas é muito mais frequente quando nos relacionamos com animais.   Que outra criatura é capaz de morrer de alegria por te reencontrar depois de vc ter ido lá fora jogar o lixo – durante o impressionante intervalo de 28 segundos? 

Parei de passar naquela rua específica.   Me dei conta de que havia perdido definitivamente uma grande amizade. Do outro lado da porta, havia alguém que me amava, que queria estar ao meu lado, que se alegrava só de ouvir minha voz.  Se eu tivesse imaginado que a cachorrinha sentiria saudades, teria engolido uns sapos, teria feito mais serviços de office girl, teria cedido meu ouvido mil vezes mais... Pois eu ainda a amo da mesma maneira.   Mas na minha miopia, achei que de todos os envolvidos, a cachorra seria a última a sofrer com a minha ausência.  E, provavelmente, ela foi a única que realmente sentiu a minha falta.